Post by Terry Mcginnis on Aug 12, 2004 19:52:21 GMT -3
-Câncer cerebral.
É esse o diagnóstico do médico. Essas duas palavras que pousam profundamente no coração de meus pais. No meu também.
Silêncio. O ar aqui na sala de espera é frio. O médico, homem de porte ereto e altivo, fala com moderação, tentando diminuir o impacto da notícia. Seu cabelo e os olhos negros contrastam com a alvura de seu jaleco. Meu irmão está com câncer. Vinte e cinco anos apenas. A vida nem sempre é justa.
Tomografias não costumam mentir. Posso divisar agora mesmo o rastro do tumor maligno espocando nas mãos do médico. Gesticula nervosamente ao explicar a doença aos meus pais. Estão cabisbaixos. Não querem acreditar.
-Câncer...mas Felipe é tão jovem... – minha mãe se desmancha numa torrente de lágrimas. Meu pai a abraça e consola.
É por isso que ele não estava enxergando bem ultimamente. Queixava-se de ver tudo embaçado e turvo. Foi a vários oftalmologistas e nada de errado foi constatado, sua visão estava em ótimas condições. Então, por que não enxergava bem? O problema era mais agudo, mais profundo.
Agora faz sentido. Um tumor pode explicar muitas coisas.
O médico acabou de marcar a cirurgia. Mal deu a notícia e já vem falar em cirurgia. Semana que vem. Radioterapia. Nunca se tem completa segurança com ela. Aliás, nunca se tem completa segurança com nenhuma cirurgia.
Estamos no hospital. A cirurgia vai terminar a qualquer momento. Esta sala de espera continua gelada. É o maldito ar-condicionado. Minha mãe não pára de apertar minha mão. Sinto sua aflição, sua angústia. Seus olhos são tristes, como os de Felipe sempre foram, mesmo quando ele era feliz. Uma pequena e discreta lágrima cintila.
-Calma, mãe. Ele é forte. Vai ficar bem, você vai ver – minha vez de consolá-la.
Meu pai não sentou um minuto. Está de pé até agora, andando de um lado para o outro. Chega a irritar, não pára de olhar o relógio. Deve ter tomado uns cinco copos de café.<br> Lá vem o médico. O mesmo porte ereto e altivo. Minha mãe se põe de pé num salto.
-Como ele está?<br> Alívio. A operação foi bem-sucedida e o câncer, extinto. Felipe está bem. Não dá pra medir a felicidade no rosto do meu pai, muito menos da minha mãe. O médico nos conduz até o quarto de Felipe, para que possamos vê-lo. Lá está ele, inerte na cama, a cabeça enfaixada, inconsciente. Solitário, mas em paz.
O tempo passou rápido. Felipe se recuperou bem. Seus cabelos cresceram e ele retomou a aparência sadia de antes. E meus pais recuperaram a felicidade, em especial minha mãe, mulher forte, mas que não poderia suportar a perda do filho.
Má notícia. Meu irmão fez um desses exames de rotina e foi detectado o retorno do tumor. Esse é o problema com o câncer: ele sempre volta, e cada vez mais forte. Mas Felipe está com sorte. O tumor foi acusado com certa antecedência na tomografia. Não é fatal. Ainda. Vai ter que operar de novo. Quantas vezes uma pessoa pode agüentar ter seu cérebro aberto e varado por radioterapia?
Sala de espera novamente. Eu e meus pais. Mais silêncio. Hospitais não são lugares agradáveis.
-Será que ele sai dessa? – pergunta minha mãe com pequenez na voz.
-Claro – minha resposta não convence nem a mim.
-Calma, querida. Os médicos disseram que as chances de remoção do tumor são grandes – meu pai tenta ajudar, sem sucesso. Mamãe está nitidamente abatida.
O médico entra na sala. O mesmo homem de porte ereto e altivo. A mesma moderação na voz. Mamãe, apesar de aflita e ansiosa, não pergunta nada. A expressão do médico diz tudo.
Felipe está bem. Mais uma vez. Ele é forte. Eu sabia que ia agüentar o tranco.
Os meses passam. O tumor não regressou. Felipe está saudável, porém diferente. Não apresenta o mesmo comportamento bonachão de sempre. As habituais calma e bondade deram lugar a um espírito irascível. Sua alma generosa e complacente esmaece com o correr dos dias. Zanga-se com facilidade, está agressivo e rancoroso, em oposição ao jovem reservado e sereno que costumava ser. Está gritando com todo o mundo, até com minha mãe, a quem sempre devotou especial carinho. É um jovem atormentado. Seus olhos continuam tristes, porém com algo de raivosos. Meu pai acha que é por causa do maldito tumor, que deixou sulcos profundos em sua alma.
Já faz um ano que ele operou pela segunda vez. O dia amanheceu chuvoso hoje. O café está amargo. O telefone toca. Minha mãe corre para atender. Da cozinha, não ouço o que ela fala. Mas capto uma exclamação desesperada:
-Não!
Aconteceu alguma coisa. Estou preocupado. Agora estou na sala, ao lado dela.
-Você está brincando...meu Deus...por favor, de novo não... – ela lamuria ao desligar o telefone. Mesmo sabendo a resposta, eu pergunto:
-O que aconteceu, mãe?
Sua resposta vem em lágrimas. Abraço-a. Quero dizer algo reconfortante, mas meus lábios não me obedecem. Estou com medo. Tenho vontade de chorar. O tumor voltou. Era meu pai no telefone, ligando do hospital. Parece que agora é definitivo. Os médicos cogitaram de outra cirurgia, mas já é tarde. Vão tentar quimioterapia. Não garantem nada.
Agora só me resta rezar.
A quimioterapia, como esperado, não deu certo. Felipe está internado em coma profundo há dois dias. O tumor não dá tréguas, dilacera seu cérebro, e não há perspectivas de melhora. Ele está como um vegetal, respirando com a ajuda de aparelhos. É tão triste isso...
Eu e meus pais o visitamos diariamente, sempre na esperança de um milagre. Infelizmente, não há nada a fazer, e milagres não acontecem. A cada dia que passa, meu irmão envelhece alguns anos. A cada dia que passa, ele morre um pouco. Minha mãe diz que quer morrer junto.
Está muito magro. Alimenta-se somente de soro. Um corpo desgastado e exausto. Todos os dias minha mãe traz uma maçã. Apesar de saber que ele não pode comer, traz assim mesmo. Diz que é a fruta preferida dele.
As enfermeiras gostam muito dele. Sempre o tratam com atenção. Dizem que, não obstante sua aparência vergastada, deve ter sido um rapaz muito bonito. Elas se afeiçoaram a sua expressão langorosa, inerme e intocada, mesmo o rosto sulcado por rugas invasivas. Há um tipo de beleza rara que fulgura naquele semblante combalido e repleto de sofrimento.
Outro dia uma das enfermeiras pediu uma foto dele. Mamãe, consternada, não conseguiu recusar. Escolheu a que mais gostava. Uma foto antiga, de quando ele tinha uns cinco anos. Eu mal era nascida. Essa foto guarda um encanto infantil que o tempo se encarregou de solapar. Seus olhos já eram tristes, assim como o sorriso. A foto preservou o lânguido semblante que tanto agrada à enfermeira.
É esse o diagnóstico do médico. Essas duas palavras que pousam profundamente no coração de meus pais. No meu também.
Silêncio. O ar aqui na sala de espera é frio. O médico, homem de porte ereto e altivo, fala com moderação, tentando diminuir o impacto da notícia. Seu cabelo e os olhos negros contrastam com a alvura de seu jaleco. Meu irmão está com câncer. Vinte e cinco anos apenas. A vida nem sempre é justa.
Tomografias não costumam mentir. Posso divisar agora mesmo o rastro do tumor maligno espocando nas mãos do médico. Gesticula nervosamente ao explicar a doença aos meus pais. Estão cabisbaixos. Não querem acreditar.
-Câncer...mas Felipe é tão jovem... – minha mãe se desmancha numa torrente de lágrimas. Meu pai a abraça e consola.
É por isso que ele não estava enxergando bem ultimamente. Queixava-se de ver tudo embaçado e turvo. Foi a vários oftalmologistas e nada de errado foi constatado, sua visão estava em ótimas condições. Então, por que não enxergava bem? O problema era mais agudo, mais profundo.
Agora faz sentido. Um tumor pode explicar muitas coisas.
O médico acabou de marcar a cirurgia. Mal deu a notícia e já vem falar em cirurgia. Semana que vem. Radioterapia. Nunca se tem completa segurança com ela. Aliás, nunca se tem completa segurança com nenhuma cirurgia.
Estamos no hospital. A cirurgia vai terminar a qualquer momento. Esta sala de espera continua gelada. É o maldito ar-condicionado. Minha mãe não pára de apertar minha mão. Sinto sua aflição, sua angústia. Seus olhos são tristes, como os de Felipe sempre foram, mesmo quando ele era feliz. Uma pequena e discreta lágrima cintila.
-Calma, mãe. Ele é forte. Vai ficar bem, você vai ver – minha vez de consolá-la.
Meu pai não sentou um minuto. Está de pé até agora, andando de um lado para o outro. Chega a irritar, não pára de olhar o relógio. Deve ter tomado uns cinco copos de café.<br> Lá vem o médico. O mesmo porte ereto e altivo. Minha mãe se põe de pé num salto.
-Como ele está?<br> Alívio. A operação foi bem-sucedida e o câncer, extinto. Felipe está bem. Não dá pra medir a felicidade no rosto do meu pai, muito menos da minha mãe. O médico nos conduz até o quarto de Felipe, para que possamos vê-lo. Lá está ele, inerte na cama, a cabeça enfaixada, inconsciente. Solitário, mas em paz.
O tempo passou rápido. Felipe se recuperou bem. Seus cabelos cresceram e ele retomou a aparência sadia de antes. E meus pais recuperaram a felicidade, em especial minha mãe, mulher forte, mas que não poderia suportar a perda do filho.
Má notícia. Meu irmão fez um desses exames de rotina e foi detectado o retorno do tumor. Esse é o problema com o câncer: ele sempre volta, e cada vez mais forte. Mas Felipe está com sorte. O tumor foi acusado com certa antecedência na tomografia. Não é fatal. Ainda. Vai ter que operar de novo. Quantas vezes uma pessoa pode agüentar ter seu cérebro aberto e varado por radioterapia?
Sala de espera novamente. Eu e meus pais. Mais silêncio. Hospitais não são lugares agradáveis.
-Será que ele sai dessa? – pergunta minha mãe com pequenez na voz.
-Claro – minha resposta não convence nem a mim.
-Calma, querida. Os médicos disseram que as chances de remoção do tumor são grandes – meu pai tenta ajudar, sem sucesso. Mamãe está nitidamente abatida.
O médico entra na sala. O mesmo homem de porte ereto e altivo. A mesma moderação na voz. Mamãe, apesar de aflita e ansiosa, não pergunta nada. A expressão do médico diz tudo.
Felipe está bem. Mais uma vez. Ele é forte. Eu sabia que ia agüentar o tranco.
Os meses passam. O tumor não regressou. Felipe está saudável, porém diferente. Não apresenta o mesmo comportamento bonachão de sempre. As habituais calma e bondade deram lugar a um espírito irascível. Sua alma generosa e complacente esmaece com o correr dos dias. Zanga-se com facilidade, está agressivo e rancoroso, em oposição ao jovem reservado e sereno que costumava ser. Está gritando com todo o mundo, até com minha mãe, a quem sempre devotou especial carinho. É um jovem atormentado. Seus olhos continuam tristes, porém com algo de raivosos. Meu pai acha que é por causa do maldito tumor, que deixou sulcos profundos em sua alma.
Já faz um ano que ele operou pela segunda vez. O dia amanheceu chuvoso hoje. O café está amargo. O telefone toca. Minha mãe corre para atender. Da cozinha, não ouço o que ela fala. Mas capto uma exclamação desesperada:
-Não!
Aconteceu alguma coisa. Estou preocupado. Agora estou na sala, ao lado dela.
-Você está brincando...meu Deus...por favor, de novo não... – ela lamuria ao desligar o telefone. Mesmo sabendo a resposta, eu pergunto:
-O que aconteceu, mãe?
Sua resposta vem em lágrimas. Abraço-a. Quero dizer algo reconfortante, mas meus lábios não me obedecem. Estou com medo. Tenho vontade de chorar. O tumor voltou. Era meu pai no telefone, ligando do hospital. Parece que agora é definitivo. Os médicos cogitaram de outra cirurgia, mas já é tarde. Vão tentar quimioterapia. Não garantem nada.
Agora só me resta rezar.
A quimioterapia, como esperado, não deu certo. Felipe está internado em coma profundo há dois dias. O tumor não dá tréguas, dilacera seu cérebro, e não há perspectivas de melhora. Ele está como um vegetal, respirando com a ajuda de aparelhos. É tão triste isso...
Eu e meus pais o visitamos diariamente, sempre na esperança de um milagre. Infelizmente, não há nada a fazer, e milagres não acontecem. A cada dia que passa, meu irmão envelhece alguns anos. A cada dia que passa, ele morre um pouco. Minha mãe diz que quer morrer junto.
Está muito magro. Alimenta-se somente de soro. Um corpo desgastado e exausto. Todos os dias minha mãe traz uma maçã. Apesar de saber que ele não pode comer, traz assim mesmo. Diz que é a fruta preferida dele.
As enfermeiras gostam muito dele. Sempre o tratam com atenção. Dizem que, não obstante sua aparência vergastada, deve ter sido um rapaz muito bonito. Elas se afeiçoaram a sua expressão langorosa, inerme e intocada, mesmo o rosto sulcado por rugas invasivas. Há um tipo de beleza rara que fulgura naquele semblante combalido e repleto de sofrimento.
Outro dia uma das enfermeiras pediu uma foto dele. Mamãe, consternada, não conseguiu recusar. Escolheu a que mais gostava. Uma foto antiga, de quando ele tinha uns cinco anos. Eu mal era nascida. Essa foto guarda um encanto infantil que o tempo se encarregou de solapar. Seus olhos já eram tristes, assim como o sorriso. A foto preservou o lânguido semblante que tanto agrada à enfermeira.